Violência doméstica e aspectos socioeconômicos: enlaces, negociações e rupturas

 

Domestic violence and socioeconomic aspects: binding, negotiations and ruptures

 

 

Francelma Lima R. de Oliveira

Munique Therense

Izaura Rodrigues Nascimento

francelmalimaramos@hotmail.com  

mtpontes@uea.edu.br

irnascimento@uea.edu.br

Leandro Beiragrande da Costa

Ana Galdina dos Reis Mendes

André Luiz Machado das Neves

adm.leandrocosta@gmail.com

ana_galdina@hotmail.com

almachado@uea.edu.br

Universidade do Estado do Amazonas – UEA - Brasil

 

 

Recibido:   23-03-2023

Aceptado:  30-05-2023

 

 

Resumo

O objetivo foi identificar aspectos socioeconômicos relacionados à violência doméstica. Adotou-se, na análise, a Teoria Social de Pierre Bourdieu. Optou-se pela abordagem qualitativa, com análise documental e pesquisa de campo, utilizando entrevista semiestruturada com nove interlocutoras atendidas em Serviço de Apoio no município de Itacoatiara, Amazonas, Brasil. Como resultados tem-se que as variáveis de gênero e classe reforçaram relações conjugais com assimetria de poder; medos relacionados à denúncia estavam fortemente relacionados à fragilidade da efetivação do sistema de proteção de mulheres no cenário de interior do Amazonas; o trabalho de cuidado familiar, em detrimento do trabalho formal remunerado, foi dispositivo perpetuador da dependência financeira.

Palavras-chave: violência contra a mulher, implicações econômico-financeiras, dominação masculina, Lei Maria da Penha, patriarcado. 

 

Abstract

The objective was to identify socioeconomic aspects related to domestic violence. Pierre Bourdieu's Social Theory was adopted in the analysis. A qualitative approach was chosen, with document analysis and field research, using semi-structured interviews with nine interlocutors assisted in the Support Service in the municipality of Itacoatiara, Brazil. As a result, gender and class variables strengthened marital relationships with power asymmetry; fears related to the complaint were strongly related to the protection of the effectiveness of the women's protection system in the scenario of the interior of the Amazon; family care work, to the detriment of paid formal work, was the device that perpetuated financial dependence.

Keywords: violence against women, economic-financial implications, male domination, Maria da Penha Law, patriarchy.

1. Introdução

 

 

Sob a ótica das ciências sociais, de acordo com Grossi (2008), a violência doméstica pode ser compreendida de duas formas: a primeira, de caráter estrutural, se dá pela lógica centrada na opressão das mulheres pelos homens, enquanto a outra tem como foco a argumentação de que a violência é efeito da relação afetivo/conjugal. Diante desses aspectos, lançou-se mão do conceito culturalista da violência contra a mulher para análise dos resultados desta pesquisa, no qual a opressão homem/mulher revela uma tendência essencialista que tende a tornar-se universal nas relações entre homens e mulheres. Nele a violência é entendida como um atributo natural do homem e não como um traço culturalmente determinado. Já a segunda forma entende a violência na perspectiva de uma visão culturalista, que parte de uma condição de interdependência entre os membros familiares, para entender o uso da violência em uma relação afetivo-conjugal (Grossi, 2008). Portanto, o olhar segue a trilha proposta pela perspectiva relacional, fruto de um duplo vínculo que inviabiliza o entendimento unívoco, uma vez que há sempre duas mensagens sendo transmitidas (Grossi, 2008; Oliveira, 2015).

Observa-se que essas duas perspectivas acabam influenciando-se mutuamente na cultura acadêmica brasileira. Nessa direção, parte-se da noção de violência como problema social, sendo necessário, para a sua análise e compreensão, o apoio em elementos das teorias sociais. Toma-se como exemplo as definições de indignação, exterioridade, homogeneização e a negatividade do complexo “conjunto” de fenômenos abrangidos (Rifiotis, 2008), ideias que se orientam na mesma direção trazida por Pierre Bourdieu (2019) em sua análise sobre a dominação masculina em Cabila.

Bourdieu (2019) considera os fatores estrutural e relacional para compreender a violência contra a mulher. Ambos comportam uma relação de dominação e um campo de luta, no qual a força do grupo dominante nas relações macrossociológicas reproduz-se nas relações afetivo-conjugal por meio da naturalização dos comportamentos de homens e mulheres. Desse modo, a violência física contra as mulheres é precedida e sustentada pela violência simbólica, alicerçada por uma ordem social considerada normal. Entender como se manifestam tais tipos de violência exige uma aproximação da realidade empírica, de suas normas, do que revelam as estatísticas e, neste caso, das falas das pessoas que foram vítimas de violência.

Na perspectiva jurídico-legal, a violência contra a mulher é conceituada como violência doméstica e familiar na Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha. No art. 5 desta lei, a violência contra a mulher está definida como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” ocorrida no âmbito do seu espaço de convívio, em relações estabelecidas por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa ou, ainda, em qualquer relação íntima de afeto (Brasil, 2006).

Segundo o relatório de pesquisa intitulado “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil” (FBSP, 2021: 9), dois fatores se fizeram presentes nas três edições lançadas (2017, 2019 e 2021):

 

“[...] as mulheres sofreram mais violência dentro da própria casa e os autores de violência são pessoas conhecidas da vítima.” Em termos de números, nos últimos dois anos, marcados pelas medidas sanitárias de enfrentamento à pandemia de Covid-19 no país, foram contabilizados 2.670 feminicídios e 110.214 casos de estupro e estupro de vulnerável de vítimas do gênero feminino (FBSP, 2022: 4-9).

 

As estatísticas revelam o quão desafiador é o enfrentamento da violência sofrida pelas mulheres brasileiras, sobretudo no que tange à adoção de medidas preventivas, ações de proteção e acolhimento da vítima, bem como a responsabilização e punição dos culpados. Agravando a situação já delicada, no período de restrições impostas com vistas à redução do contágio por Covid-19, as mulheres tiveram que conviver por um tempo maior com seus agressores, sofreram com dificuldades financeiras e também com o efeito danoso que adveio do seu isolamento: o consequente distanciamento da rede de proteção.

Sob essa perspectiva, tendo por marco epistemológico para compreensão da violência contra a mulher a teoria social de Pierre Bourdieu, objetivou-se analisar aspectos socioeconômicos na vivência das interlocutoras que são atendidas em um Serviço de Apoio à Mulher, Idoso e Criança, no município de Itacoatiara, interior do Amazonas, Brasil. A cidade situa-se na região metropolitana de Manaus, tem o segundo maior Produto Interno Bruto (PIB) do estado e a terceira maior população. Possui porto fluvial e é considerado um importante polo agroeconômico no Amazonas.

Neste artigo, a compreensão das mulheres que vivem no interior do estado será amparada pela literatura sobre as ribeirinhas da região Norte. Alves e Matos (2020) apontam que essas mulheres circulam entre os espaços público e privado, desenvolvendo trabalho polivalente numa relação de reciprocidade com o meio ambiente, na medida em que cuidam dele e, ao mesmo tempo, nele produzem sua subsistência e produtos de comercialização. As autoras alertam também para os estados de precariedade e subalternidade desses trabalhos, em consonância com Oliveira e Nina (2014) que, outrora, já informavam sobre as mulheres ribeirinhas acumularem as funções de donas de casa, trabalhadoras da agricultura e agroindústria, bem como agentes políticas.

Assim, este artigo busca entender os aspectos socioeconômicos estreitamente ligados ao fenômeno da violência doméstica, subsidiando reflexões sobre as ações de combate e enfrentamento em regiões situadas em contextos diferentes da capital, à luz da teoria social de Pierre Bourdieu.

 

1.1. A Teoria Social de Pierre Bourdieu como marco epistemológico para compreensão da violência contra a mulher

 

Pierre Bourdieu (1996), sociólogo francês, fundamentou seu pensamento pela grande influência de Max Weber e Durkheim. Foi um dos primeiros sociólogos europeus, de grande notoriedade nacional e internacional, com análise voltada à sociologia da educação e da cultura que marcou gerações de intelectuais. Dedicou-se à pesquisa das sociedades contemporâneas e das relações sociais que mantêm os diferentes grupos sociais, tendo o sistema de ensino como instituição que permite a reprodução da cultura dominante. Bourdieu (2019) posiciona-se contra todas as formas de dominação e de mascaramento da realidade social.

Inicialmente, convém frisar a relevância do estudo do livro A Dominação Masculina (Bourdieu, 2019) como instrumento reflexivo importante para este artigo e que se destaca nas pesquisas das ciências sociais na área de pesquisa de campo. O autor utiliza o povo Berberie, nativo da Cabília, região montanhosa da Argélia, pois ali identificou uma forma de organização androcêntrica, onde as relações culturais, simbólicas e estruturais colocavam o homem como princípio de tudo. Em seus estudos, ele identifica uma forma taxonômica de tratar as relações de gênero, classificando-as de forma binária, sempre com dois elementos de oposição, em que as mulheres estarão do lado inferior, úmido, curvo, baixo, enquanto os homens estarão do lado exterior, seco, direto e alto.

A principal temática do livro está no debate das relações de dominação do gênero masculino sobre o feminino, que são feitas de forma simbólica, buscando desnaturalizar, desmitificar as estruturas de dominação que, com o decorrer da história, assumiram um caráter natural. Para Bourdieu (2019), a dominação masculina é violência simbólica, violência que não é percebida pelas próprias vítimas, que se esconde na visão cosmológica de uma sociedade, enraíza-se nas práticas culturais, esconde-se na diferenciação sexual, utiliza-se do corpo feminino como instrumento de controle.  O resultado da violência simbólica é a submissão paradoxal, que se expressa no reconhecimento e respeito pelas condutas dominantes, retirando das mulheres o seu direito à ocupação de espaços na sociedade.  

A estrutura social é um sistema hierárquico em que os diversos arranjos interdependentes de poder material e simbólico determinam a posição social ocupada pelos grupos isoladamente. O poder tem múltiplas fontes, por isso, a influência que um determinado grupo exerce sobre os demais é fruto da articulação entre elas: poder financeiro, poder cultural, poder social e poder simbólico (Bourdieu, 2003).

Não há como se falar da teoria bourdieusiana sem ao menos mencionar brevemente os três principais conceitos desenvolvidos em suas pesquisas durante as décadas de 1960 e 1970 sobre a vida cultural da sociedade francesa: campo, habitus e capital. Estes devem ser estudados em sua conexão e interdependência, e não como ideias separadas.

O habitus seriam estruturas constitutivas de um tipo particular de meio, que podem ser aprendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado. O habitus encontra-se no princípio do encadeamento das “ações” que são objetivamente organizadas como estratégias sem ser de modo algum o produto de uma verdadeira intenção estratégica (Bourdieu, 1996).

O campo, por seu turno, diz respeito ao espaço onde se desenvolvem relações de poder, de modo que as pessoas são construídas e constroem, concomitantemente, o campo social em seu cotidiano, em uma verdadeira interdependência com a estrutura social. Cada campo é caracterizado pela distribuição desigual do poder naquele nicho de interesse, havendo, por conseguinte, uma hierarquização decorrente do conflito entre dominantes, cuja ação é conservadora no sentido de manter a conjuntura que está posta, e dominados, que possuem comportamento revolucionário, visando desacreditar a legitimidade dos atuais detentores do capital social daquele campo (Bourdieu, 1996).

Por fim, o capital refere-se aos ativos à disposição de uma pessoa que lhe conferem posição de destaque em determinado campo, constituindo o elemento central das disputas entre os agentes. Quatro são os tipos de capital considerados por Bourdieu (1996): econômico (renda, recursos materiais, posses); cultural (conhecimento formal, reconhecido por diplomas e títulos); social (rede de relações que propicia algum tipo de vantagem); e simbólico (privilégios sociais, status, honra). O conjunto desses recursos de poder que o indivíduo detém determinará sua posição na hierárquica estrutura das sociedades, condicionando seu proceder e suas oportunidades de melhorar seu nível social.

 

 

2. Percurso metodológico

 

 

A caminhada metodológica norteou-se pela abordagem qualitativa, por meio da qual é possível enfocar a compreensão e a explicação da dinâmica das relações sociais, valorizando-se aspectos da realidade que não podem ser quantificados, em razão de sua natureza subjetiva, que exigem análise profunda e densa. Estas características são marcantes nesse tipo de pesquisa. Para Minayo (2009: 14), tal abordagem envolve “o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”.

Quanto aos procedimentos técnicos, a presente pesquisa é do tipo documental e de campo. Escolheu-se, como recorte do campo, o Serviço de Apoio à Mulher, Idoso e Criança (SAMIC)/Casa de Maria, localizado em um anexo da Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher (DECCM) de Itacoatiara, no estado do Amazonas, Brasil, distante 176 km da capital Manaus, e que faz parte de sua região metropolitana. O SAMIC, administrado pela Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (SEJUSC), foi inaugurado em junho de 2019 com o intuito de disponibilizar uma rede de serviços de atendimento especializado e multiprofissional. Diariamente, oferece orientação, acolhimento e apoio às mulheres vítimas de violência e seus familiares.

No que concerne aos documentos, foram consultados os dossiês de mulheres encaminhadas ao Projeto SAMIC/Casa de Maria, constituídos pelo Cadastro do Atendimento Individual da Mulher, Instrumento de Atendimento e Mapa de Atendimento, desde que suas páginas não estivessem incompletas ou danificadas, bem como os Boletins de Ocorrência registrados, para esses casos, pela Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher (DECCM). As solicitações desses documentos à coordenadora e ao Delegado Titular, respectivamente, foram formalizadas por ofício. Tais documentos foram escolhidos em virtude de conterem registros das características socioeconômicas das mulheres atendidas, bem como notificações a respeito do trâmite institucional acionado a partir do momento em que a delegacia foi interpelada. Assim, entende-se que a análise documental visou mapear os conteúdos inscritos no papel, tomando as inscrições como fontes reveladoras dos fenômenos que compõem o objeto pesquisado.

As interlocutoras da pesquisa foram nove mulheres sobreviventes de violência, maiores de 18 anos e que estavam realizando as atividades oferecidas pela Casa de Maria. Foram excluídas aquelas que faziam uso abusivo de substâncias, como álcool e outras drogas, e possuíssem vínculo empregatício em empresas privadas com carteira assinada.

As entrevistas semiestruturadas foram realizadas na sala da psicóloga do projeto, tendo sido utilizado um roteiro semiestruturado composto por 11 perguntas que abrangiam a situação econômico-financeira da vítima, sua vida pregressa trabalhista, se fez algum curso profissionalizante, se alguma vez trabalhou fora de casa, se possuía renda para o seu próprio sustento e o de seus filhos sem a ajuda do marido/companheiro/autor da violência, e se essas situações impediram-na de denunciar os autores da violência.

Relevante se faz salientar que, por terem sido abordadas questões pessoais que envolviam um ambiente de violência, nos momentos de desconforto, constrangimento e emoção durante a participação, as mulheres estavam livres para interromper imediatamente a entrevista e retomá-la em outro momento. Aliás, em qualquer momento e sem a necessidade de qualquer justificativa, as vítimas poderiam desistir de participar da pesquisa.

Para análise dos dados, foram utilizados os fundamentos teóricos e técnicos de Minayo (2013). Estes assumem relevância no âmbito científico em relação à análise de conteúdo, com vistas à compreensão de o material coletado confirmar ou não os pressupostos da pesquisa e ampliar o entendimento de contextos para além do que se pode verificar nas aparências do fenômeno. Ressalta-se que a organização das etapas para a análise de conteúdo – pré-análise, exploração do material e tratamento dos dados e interpretação – deixa claro que as intenções e ações não se apresentam de maneira estanque, linear e, sim, como um roteiro didático para o tratamento dos dados, sendo importante que o pesquisador tenha ciência de que isso pode passar por entrelaçamentos e idas e vindas, se necessário.

Todas as participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Ressalta-se ainda a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Amazonas, sob o nº do CAEE 42192920.0.0000.5016 e Parecer nº 4639460.

 

3. Resultados e discussão

 

 

Inicialmente, buscou-se traçar aspectos sociodemográfico e econômico-financeiro das “Marias” – termo que será utilizado para referir as nove interlocutoras atendidas pelo Serviço de Apoio à Mulher, Idoso e Criança (SAMIC)/Casa de Maria de Itacoatiara (AM).

 

Quadro 1. Características do perfil sociodemográfico das “Marias”

 

Variáveis

n

%

Idade (anos)

 

 

< 20

-

-

20 a 29

-

-

30 a 39

5

56

≥ 40

4

44

Formação acadêmica (escolaridade)

 

 

1º grau incompleto

3

33

1º grau concluído

1

12

2º grau incompleto

-

-

2º grau concluído

3

33

Faculdade

2

22

Ganho mensal (salário-mínimo)

 

 

 

< salário-mínimo

4

44

Salário-mínimo

3

33

> salário-mínimo

2

23

Atividades que exerciam à época da denúncia

 

 

 

Atividade informal (sem carteira assinada)

6

67

Atividade formal (com carteira assinada)

3

33

Tempo para denunciar o agressor (anos)

 

 

 

< 5

5

56

5 a 9

1

11

10 a 19

1

11

≥ 20

2

22

Fonte: elaboração própria.

 

As interlocutoras possuíam a idade média de 38 anos. Portanto, já se encontravam na fase adulta, sendo uma delas casada no civil e as oito restantes conviventes sem união estável formalmente reconhecida com os autores da violência. Em relação à formação acadêmica, uma possuía faculdade e outra o segundo grau completo, enquanto sete não tinham o segundo grau completo, revelando que a maioria das vítimas atendidas na delegacia de Itacoatiara (AM) não possuía alto grau de instrução ou mantiveram-se nos graus iniciais de escolaridade.

Ao verificar as características do perfil econômico-financeiro das mulheres sobreviventes de violência que participaram desta pesquisa, percebeu-se que mais da metade não tinha renda formal na época da agressão. Os dados sobre o ganho mensal indicaram que o trabalho informal (sem carteira assinada) de valor igual ou inferior ao salário-mínimo foi prevalente. Conforme relatos das interlocutoras que se encontram no Quadro 1, negociavam-se, na relação, modos de dependência e as justificativas para o acordo:

 

Quadro 2. Contexto econômico-financeiro das mulheres vítimas de violência

 

Dependência financeira

Justificativa

“[...] nunca trabalhei porque meu marido nunca deixou.”

“[...] sempre falava que o dinheiro dele era suficiente para toda a família.”

“Não trabalhei porque meu marido não deixava.”

“Ele não deixava que eu trabalhasse porque dizia que eu não teria tempo para ele e para os nossos filhos.”

“[...] nunca trabalhei, era sustentada por ele.”

“Meu marido não deixava. Ficava dizendo que eu tinha que ficar em casa cuidando dos filhos e dos trabalhos domésticos.”

Apesar de ser Assistente Social e ter trabalhado antes da gente se amigar, ele não deixava que eu trabalhasse.”

“[ele] ficava dizendo que se eu tinha, que eu precisava ficar em casa para dar uma boa criação para os nossos filhos. Além disso, a casa não poderia ficar bagunçada.

Fonte: elaboração própria.

 

Conforme se observa nos trechos nos quais se identifica a dependência financeira, a negociação se dava a partir dos marcadores das relações de gênero e das hierarquias entre homens e mulheres. Esses achados dialogam com a pesquisa de Sousa e Guedes (2016), cujo resultado apontou para a divisão sexual do trabalho desigual e desfavorável para as mulheres brasileiras. Essa mesma pesquisa aponta ainda que permanece a separação laboral, que reserva aos homens, de forma predominante, os espaços produtivos, apesar de ter havido uma elevação em sua participação doméstica, e às mulheres, o trabalho doméstico, pois a maior participação no mercado de trabalho que se tem verificado, não veio acompanhada de uma compensação na realização dos trabalhos da casa. Essa atividade continua como tarefa exclusiva delas e pouco compartilhada com os homens.

Soma-se a essa compreensão as características do trabalho feminino desempenhado em regiões do interior da região Norte do Brasil. Os dados sobre a prevalência do trabalho informal declarado nos documentos analisados contrastam com a percepção de ausência de trabalho verbalizada durante as entrevistas. Em outras palavras, isso parece indicar que as mulheres não vivenciavam o trabalho doméstico como trabalho remunerado, a despeito de, tal qual sinaliza Federici (2019), ele ser fundamental para a manutenção do trabalho masculino no ambiente fora de casa. A autora sinaliza ainda que elas não reconheciam o trabalho informal como trabalho, apesar de gerar renda. Para Oliveira e Nina (2014), a diluição da importância das atividades realizadas aponta tanto para a não superação da divisão do trabalho com base em gênero, quanto para a superação que caracteriza a existência das mulheres ribeirinhas.

  No que diz respeito ao tempo que as sobreviventes demoravam para denunciar os autores de violência, verificou-se que a maioria levou menos de 5 anos para tomar essa decisão. Não obstante, o lapso temporal, em dois casos, foi de mais de 20 anos. Relacionando esse dado com aquele relativo à renda e à classe socioeconômica, observou-se uma ratificação do que é encontrado na literatura científica no que diz respeito à forma como as interseções entre os marcadores sociais da diferença (gênero, classe, raça) atuam, dificultando a quebra do rompimento do ciclo de violência (Prado e Sanematsu, 2017).

As narrativas das mulheres do Projeto SAMIC/Casa de Maria, observadas nos trechos das entrevistas, quadros e análises documentais, permitiram examinar o lugar da violência e sua relação com aspectos econômico-financeiros.

Em primeiro lugar, pretende-se apresentar o habitus da mulher do lar e a dominação masculina. Das “Marias” entrevistadas, seis delas não possuíam renda própria porque, por algum motivo, não trabalhavam, tendo suas despesas custeadas pelo marido/companheiro. Durante a realização da pesquisa, identificou-se que, mesmo entre as participantes que possuíam uma formação, na relação conjugal, foi estabelecida a condição de que elas tinham que ficar cuidando da casa e dos filhos, conforme se constata no Quadro 1.

Observa-se, nas narrativas, que todas as falas abordavam a autorização do marido para trabalhar e as justificativas empreendidas por eles para serem forjadas em mulheres do lar. Nos três fragmentos, identifica-se a relação de dominação masculina. Observou-se, entre as Marias, a força da divisão entre os trabalhos que deviam ser desenvolvidos na casa. De acordo com Bourdieu (2003), o trabalho desenvolvido em casa, como cuidado, assistência e educação, é relegado ao lugar da mulher. Isso pode ser considerado como uma violência simbólica, pois os seres humanos possuem quatro tipos de capitais: o capital econômico (renda financeira), o capital social (rede de amizades e convivência), o capital cultural (educação e artes) e o capital simbólico (honra, prestígio e reconhecimento). É através desse último que determinadas diferenças de poder são definidas socialmente. As falas das Marias explicitaram esses aspectos, evidenciando a dominação masculina.

É por meio do capital simbólico que instituições e pessoas transformam a sociedade. A violência simbólica se dá justamente pela falta de equivalência desse capital entre as pessoas ou instituições. O conceito foi definido por Bourdieu (2003) como uma violência com a cumplicidade de quem sofre e de quem a pratica, sem que, necessariamente, os envolvidos tenham consciência do que estão sofrendo ou exercendo. Por isso, é uma violência silenciosa e invisível. Como se observou nas narrativas das Marias, foi na relação conjugal que se estabeleceram as condições da violência, apesar de existir algum nível de consciência. Entretanto, cabe considerar que, culturalmente, por meio dos modelos de gênero, convencionou-se a força da divisão entre os trabalhos que devem ser desenvolvidos na casa e fora dela (Hirata e Kergoat, 2007). Nesse sentido, desde muito cedo, isso é naturalizado nos processos de desenvolvimento de homens e mulheres.

Em que pesem as mudanças sociais resultantes das lutas feministas, não é possível afirmar o fim da dominação masculina. A força da divisão de trabalho, por exemplo, parece ser uma das engrenagens que perpetua a assimetria de poder. Nesse sentido, cabe acionar a reflexão de Bourdieu (2019: 18):

 

“A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembleia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres; ou, no interior desta, entre a parte masculina, com o salão, e a parte feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, a jornada, o ano agrário, ou o ciclo de vida, com momentos de ruptura, masculinos, e longos períodos de gestação, femininos.”

 

Entretanto, há uma ordem social produzida em um sistema de disposições, modos de perceber, de sentir, de fazer, de pensar, que levam as pessoas a agirem de determinada forma em uma circunstância dada, como é o caso da negociação das Marias com seus cônjuges. Essa negociação foi atravessada por um sistema de repertórios de modos de pensar, gostos, comportamentos, estilos de vida, herdado da família e reforçado na escola. Isto é, os modelos relacionais de gênero, em que aos homens, através da articulação dos capitais econômico, cultural, social e simbólico, se conferem alta posição na hierarquia social. Cabe, nesse sentido, lançar mão de Bourdieu (2019: 41), quando considera:

 

“As divisões constitutivas da ordem social e, mais precisamente, as relações sociais de dominação e de exploração que estão instituídas entre os gêneros se inscrevem, assim, progressivamente em duas classes de habitus diferentes, sob a forma de hexis corporais opostos e complementares e de princípios de visão e de divisão, que levam a classificar todas as coisas do mundo e todas as práticas segundo distinções redutíveis à oposição entre o masculino e o feminino.”

 

As falas das Marias, revelaram, dessa forma, a incorporação das estruturas sociais em um indivíduo ou em um determinado grupo traduzido por Bourdieu (2003) como habitus. Este é adquirido de acordo com a posição social da pessoa, conforme o lugar de disputa em que está inserida. Isso vai permitir ao indivíduo formar posições sobre os diferentes aspectos da sociedade, como foi o caso das Marias, e elas ficaram na posição das que cuidam, limpam e passam: as mulheres do lar, cujo trabalho é não remunerado e entendido como cuidado e amor (Federici, 2019).

A posição nesse lugar de disputas – quem cuida da casa e dos filhos versus quem sai para trabalhar –, pode ser moldada pelo habitus. Este é o princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em conjunto unívoco de escolhas, de bens, de práticas (Bourdieu, 1996). E o autor prossegue:

 

“O habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas – o que o operário come, e sobretudo sua maneira de comer, o esporte que pratica e sua maneira de praticá-lo, suas opiniões políticas e sua maneira de expressá-las diferem sistematicamente do consumo ou das atividades correspondentes ao do empresário industrial; mas são também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e de divisão e gostos diferentes. Eles estabelecem a diferença entre o que é o bom ou é mau, entre o bem e o mal, entre o que é distinto e o que é vulgar etc., mas elas não são as mesmas. Assim, por exemplo, o mesmo comportamento ou o mesmo bem pode parecer distinto para um, pretensioso ou ostentatório para ouro e vulgar para um terceiro” (Bourdieu, 1996: 22).

 

Em segundo lugar, quer-se demonstrar o casamento como campo, com seus impedimentos, dinheiro e táticas de renda. Durante as entrevistas, questionou-se de modo mais diretivo se, em algum momento, o companheiro/marido a havia impedido de obter emprego e a resposta afirmativa foi unânime. Destacam-se as respostas de três participantes:

 

“Sim. Todas as vezes que falava sobre procurar um emprego, ele desconversava e dizia que o dinheiro dele dava para a família toda, e que eu não precisava trabalhar” Maria (8).

 

“Todas às vezes, ele me impedia de trabalhar. Sempre dizia que lugar de mulher era em casa cuidando dos filhos e do marido. Nunca trabalhei por causa disso” Maria (9).

 

“Sempre me impediu de trabalhar fora. Então, comecei a trabalhar em casa, fazendo bolos e conseguindo meu próprio dinheiro. Quando descobriu, começou a ficar com o meu dinheiro e a gastar com bebida e cachaça” Maria (4).

 

Os relatos acima revelam o controle sobre a pessoa por meio do controle dos recursos. O casamento forja-se, nas narrativas acima, como um campo no sentido abordado por Bourdieu (2003). As negociações que geraram o impedimento de trabalhar, a ideia de que o dinheiro do marido era suficiente ou a produção de táticas para geração de renda remetem à produção da violência simbólica. Segundo Bourdieu (2003), é sempre esperado que o homem tenha o capital maior do que o da mulher, independentemente do tipo. Isso se dá pela naturalização da dominação masculina na sociedade. Ao julgar a mulher incapaz de ocupar determinados cargos, oferecer salários mais baixos para elas em mesmos cargos que homens e considerar que elas devem ganhar menos porque engravidam, há aí um dolo simbólico que reflete nos outros campos, como o econômico.

Tais aspectos podem ser observados nas narrativas das participantes, nos contextos em que o dinheiro do marido era considerado suficiente para contemplar também as suas demandas socioeconômicas, ou quando dada a afirmação de que lugar de mulher era em casa, cuidando dos filhos e do marido, ou ainda quando impedida de trabalhar. Entretanto, observa-se, nessa trilha, não somente a submissão das Marias à negociação, mas formas de resistência a essa dominação masculina. A tática de produzir bolos para obter renda, apesar de desapropriada após descoberta pelo marido, sinaliza a constituição da relação como espaço de luta, em que os instrumentos do dominado mostraram-se inferiores aos mobilizados pelos dominantes, tal qual definido por Bourdieu (2003).

A ideia de dominação masculina sobre o corpo da mulher é refletida também em outros contextos, como nos casos de feminicídio, assassinato de mulheres pela razão de ser mulher (Ferreira e Neves, 2020). O crime era anteriormente tido como algo passional (assassinato por amor), mas, atualmente, é compreendido como a materialidade da objetificação do corpo feminino, utilizado para mostrar a existência de uma noção de superioridade do homem. Os casos de feminicídio acontecem geralmente após o término de um relacionamento, em contextos em que homens, por acreditarem que têm a propriedade sobre o corpo da mulher e por considerarem que não têm nada a perder, cometem assassinatos (Ferreira e Neves, 2020).

Ressalta-se, entretanto, que a dominação simbólica não é prerrogativa da classe dominante, porquanto também esta depende da estrutura do campo, sofrendo limitações oriundas de todas as demais. A diferença entre os dominantes e os dominados encontra-se, principalmente, no acesso privilegiado ao sistema simbólico que possibilita à classe hegemônica impor ou legitimar aquilo que lhe é próprio e caro, distinguindo-se dos demais (Bourdieu, 2003). Assim,

 

“[...] a força da ortodoxia, isto é, da dóxa direita e de direita que impõe todo tipo de domínio simbólico (branco, masculino, burguês), provém do fato de que ela transforma particularidades nascidas da discriminação histórica em disposições incorporadas, revestidas de todos os signos do natural” (Bourdieu, 2003: 147).

 

Ao analisar a estrutura social que se vive, na qual homens buscam, através da subordinação financeira, uma forma de dominação das suas companheiras/mulheres, todas as Marias, quando perguntadas se o casamento poderia findar se elas tivessem independência financeira, afirmaram que “sim” ou “sim, com certeza”. Percebe-se que a dependência econômica influenciava muito na forma que o homem negociava o casamento com as entrevistadas. As narrativas possibilitaram analisar que os companheiros e maridos costumavam deixar suas mulheres dependentes para, assim, vencerem a disputa no casamento.

O casamento das participantes, aqui entendido como um campo, possuía uma lógica interna própria. Uma lógica que só era entendida por quem estava dentro do campo e para quem possuía o habitus desse campo, que era uma lógica diferente de outros campos, como, por exemplo, aceitar não poder trabalhar ou trabalhar escondido. Dentro desse campo, cada capital específico só teria valor para os que estavam dentro do campo, dentro daquela determinada sociedade.

Bourdieu (1996) analisa o grau de autonomia em um campo pela sua capacidade de refratar, que seria a capacidade do campo de retraduzir, de forma específica, as pressões ou as demandas externas. Quando os fatores externos transparecem dentro de um campo, como fatores econômicos e políticos, e onde os interesses do campo estão ligados a interesses externos, é onde o campo é mais dependente.

Entre as narrativas, todas as Marias reafirmaram que a dependência econômica, ou seja, o campo econômico postergou a denúncia dos autores de violência e o contato com as outras pessoas ou com pessoas esclarecidas fez com que essas mulheres tomassem coragem e percebessem que poderiam ir em frente sem seus agressores. O que chamou a atenção foi o fato de três mulheres afirmarem que não denunciaram antes seus companheiros/maridos por medo, pois ficou claro também que existia uma tendência de aumento das agressões depois da denúncia ser feita na delegacia:

 

“Sempre tive medo de denunciar o meu companheiro, porque achava que, quando ele soubesse, iria me matar. Ele dizia que, se eu fosse na delegacia, ele iria me matar.” Maria (8).

“Todas às vezes que ele me batia, eu dizia que ia à delegacia denunciá-lo e, por medo, nunca ia” Maria (9).

 

“Sempre me impediu de sair de casa. Achava que eu ia na delegacia denunciá-lo e, por medo das agressões, eu nunca ia” Maria (4).

 

“Como eu não tinha dinheiro para sequer sair de casa, tinha sempre que pedir dele, dinheiro para qualquer coisa. Isso fez com que eu demorasse para ir na delegacia” Maria (1).

 

“Todas às vezes que ele me dava dinheiro, perguntava para que eu queria, e me dava o dinheiro contado. Isso me impediu várias vezes de ir até a delegacia, porque tinha outras coisas para comprar” Maria (3).

 

“Meus amigos e vizinhos, me viam machucada e me falavam sobre a lei Maria da Penha. Foi assim que decidi ir à delegacia para denunciá-lo” Maria (2).

 

“Todas às vezes, ele me impedia de sair de casa para ir à delegacia. Dizia que ia mudar e que as agressões nunca mais iam acontecer” Maria (6).

 

“Sempre me impediu de trabalhar fora, porque as pessoas me viam machucada e começavam a me mandar ir à delegacia, dizendo que aquilo era crime e ele deveria parar na cadeia” Maria (7).

 

Todas, e eles também, de algum modo, tinham ideia de que poderiam denunciar o autor de violência, o que denota maior tentativa de controle por parte dele. As falas também denotam o conhecimento e a reação da sociedade. Um campo em luta, de modo geral, mas se impondo pela ameaça no âmbito microssociológico das relações dos casais.

Para elas, as mulheres que denunciam os atos de violência acabam retornando para suas casas e, quando os autores da violência descobrem, ficam mais nervosos e agressivos, exacerbando as agressões. Esse cenário de amplificação da violência deixa as sobreviventes com medo de procurarem a delegacia.

Em terceiro lugar, deseja-se expor a dominação masculina como cultura dominante e os seus efeitos na vida das mulheres. A renúncia aos estudos foi uma narrativa presente entre as interlocutoras. Esta característica encontrada entre elas expressa o comportamento próprio da cultura dominante, o que favorece a identificação com seus códigos culturais. No caso das interlocutoras, a dedicação ao trabalho doméstico ou de suporte familiar parecia um código estabelecido em suas negociações cotidianas. Com isso, não acessavam ao que Bourdieu (1996) chama de capital cultural, de modo que classes privilegiadas, no caso dos homens, possuem mais chances de sucesso e domínio dos códigos culturais, como os escolares, e desse modo podem obter mais autonomia. Os fragmentos a seguir são ilustrativos:

 

“Nunca estudei porque fiquei grávida muito cedo e tive que deixar de ir à escola para cuidar da casa e dos filhos” Maria (8).

 

“Nunca trabalhei fora porque deixei os estudos quando era pequena. Achei que não valia a pena estudar e acabei engravidando” Maria (9).

 

“Não consegui terminar meus estudos porque tive que ajudar minha mãe, vendendo doces na rua. Precisávamos de dinheiro para comer” Maria (4).

 

Esses excertos de narrativas apontam para a feminilização do cuidado e sua estreita relação com os aspectos socioeconômicos imbrincados na violência doméstica. As Marias eram mulheres que se dedicaram ao cuidado dos filhos, da casa e da renda familiar oriunda do trabalho informal, tipos de trabalho invisibilizados. Como aponta Federici (2019), a despeito das suas atividades manterem os cônjuges (e/ou o mundo) em movimento laboral, essas mulheres e a sociedade em que estão inseridas percebem essa atividade como ausência de trabalho.

Nesse contexto social marcado pela diferença, ocorrem embates simbólicos entre as classes e suas frações motivados pela conquista ou manutenção de uma posição de domínio e pelo monopólio da violência simbólica. As classes que almejam ascensão na hierarquia social engajam-se nessas lutas no intuito de superarem sua condição de subjugadas e se tornarem as definidoras dos preceitos que balizam o mundo social, obtendo, assim, poder para impor e inculcar instrumentos de conhecimento e de expressão da realidade (Bourdieu, 1996). Na relação social em análise, trata-se da relação entre homens e mulheres, estando os primeiros na condição de dominantes.

Constata-se, em Bourdieu (2003), que os efeitos do poder simbólico inscrevem-se nos corpos, tornando-se duradouros. No mercado simbólico, uma relação de sujeito e objeto se estabelece, na qual a mulher corporifica o bem, que tem um simbolismo muito forte dentro dessa estrutura de mercado, sobretudo frente ao casamento e à família. Isso porque, no mercado simbólico – que se consolida através da atribuição de valor às coisas e às pessoas –, ela, a mulher, é o bem mais valioso, uma vez que a perpetuação de toda uma linhagem depende dela. É ela que assegura a perpetuação do próprio mercado de trocas simbólicas.

A dominação masculina sobre a mulher fundamenta-se, pois, no valor que ela representa dentro desse mercado de bens e trocas simbólicas, já que a mulher agrega valor ao homem. As práticas violentas dentro desse contexto permitem, então, ao homem afirmar e reafirmar seu valor dentro do grupo e acumular capital simbólico: a honra e a virilidade. A imagem que o homem tem de si mesmo é aquela do ser legítimo, aquele que detém o direito de definir qual é a verdade.

A violência simbólica é exercida pelo poder simbólico. Segundo as palavras do próprio Bourdieu (2003: 11):

 

“É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domesticação dos dominados’”.

 

Os sistemas simbólicos servem como meios de dominação. A ideologia passada para a sociedade, através dos meios simbólicos de dominação, é transmitida como desinteressada, ou seja, como se não fosse uma ideologia ou instrumento de dominação, quando, na verdade, é de interesse da classe produtora dessa ideologia, a classe dominante.

Retornando às ideias originais de Bourdieu (2003: 7-8), a violência simbólica é uma “[...] violência suave, insensível, invisível às suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento”. Destarte, a dominação simbólica instaura-se por intermédio de um processo sustentado pela existência e pelo reforço de pensamentos e predisposições alinhados às estruturas impostas, refletindo em ações de conhecimento, reconhecimento e submissão ao instituído por parte dos dominados que, julgando autoevidente tal processo, não conseguem romper com ele, conspirando para a sua própria dominação (Bourdieu, 2019). 

Ainda que a violência seja sentida e identificada como tal, percebe-se que as narrativas apresentaram em comum o medo das vítimas de alguma atitude posterior dos agressores, como: medo de morrer, medo de denunciar e as agressões aumentarem, medo de nunca sair do ciclo de violência e, por último, medo de não conseguir sobreviver junto com os filhos, sem a ajuda financeira dos seus agressores.

 

“[...] de viver apanhando o resto da vida.”; “medo de morrer em uma dessas agressões”. [...] “medo de não ter como se sustentar” Maria (8).

 

“Meus filhos cresceram e começaram a cobrar uma atitude minha em relação à violência” Maria (4).

 

“Meus parentes viam e me cobravam uma atitude com relação à violência sofrida.”; “Meus amigos me viam triste e abatida e percebiam a violência sofrida” Maria (2).

 

“Ele me deixava sem dinheiro, para poder não sair de casa e, com isso, não ir à delegacia denunciar” Maria (7).

 

Outra informação que chama atenção nas entrevistas é o fato de todas as vítimas afirmarem que, depois da denúncia na delegacia, as agressões não cessaram, ao contrário, intensificaram-se, o que nos permite a reflexão de que somente a judicialização da violência não é suficiente, já que a maioria delas retornava para a mesma casa do agressor denunciado. Em alguns casos, os homens autores de violência buscavam persuadi-las a voltar à delegacia para “retirar a queixa”. Percebe-se que, entre o processo de solicitação das medidas protetivas de urgência e a autorização do Juiz, há um lapso temporal que pode salvar a vida de muitas mulheres vítimas de violência doméstica, principalmente naqueles municípios mais distantes da capital.

Nesse sentido, avalia-se que, como decorrência do exercício do poder simbólico, tem-se a violência simbólica, a qual se estabelece “por meio de um ato de cognição e de mau reconhecimento que fica além – ou aquém – do controle da consciência e da vontade, nas trevas dos esquemas de habitus que são ao mesmo tempo generados e generantes.” (Bourdieu, 1996: 22-23).

Destaca-se que, apesar da denominação dessa violência estar vinculada a um âmbito simbólico, tal conceito não desconsidera as manifestações reais do poder e da violência, como situações em que pessoas são “[...] espancadas, violentadas, exploradas”, mas busca visualizar, “na teoria, a objetividade da experiência subjetiva das relações de dominação” (Bourdieu, 2003: 43).

Nesse contexto, as reflexões voltam-se às condições de efetividade da Lei Maria da Penha. Esta lei não pode ser tratada apenas como uma via jurídica para se punir os agressores, haja vista que ela também traz em seu texto o conceito de todos os tipos de violência doméstica e familiar; insere a criação de políticas públicas de prevenção, assistência e proteção às vítimas; prevê a instituição de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; institui as medidas protetivas de urgência; e estabelece a promoção de programas educacionais com perspectiva de gênero, raça e etnia, entre outras propostas.

Todos esses dispositivos intensificam uma rede integrada de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, além de atenderem às recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Mais do que uma alteração da legislação penal, a Lei n. 11.340/2006 representa um importante instrumento legal de proteção aos direitos humanos das mulheres para uma vida livre de violência. No entanto, a vulnerabilidade e as fragilidades no sistema de concretização dos direitos adquiridos pelas sobreviventes de violência doméstica esbarram em desafios institucionais estruturais que se mantêm como obstáculos para defesa ágil das vidas das mulheres. No art. 18, a lei estabelece (Brasil, 2006):

 

“Art.18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:

I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência;

II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso;

II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso, inclusive para o ajuizamento da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união estável perante o juízo competente;

III - comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis.

IV - determinar a apreensão imediata de arma de fogo sob a posse do agressor.”

 

As medidas protetivas de urgência correspondem a uma determinação do juiz na tentativa de proteger a mulher em situação de violência doméstica, familiar ou na relação de afeto, conforme a necessidade da solicitante. Elas podem ser demandadas já no atendimento policial, na delegacia, e ordenadas pelo juiz ou juíza em até 48 horas, devendo ser emitidas com urgência nos casos em que a mulher corre risco de morte. No entanto, essas 48 horas são cruciais e muitas vezes fatais para as mulheres que, por vezes, voltam ao seu lar e ao convívio com o autor da violência.

Toma-se como exemplo o Gráfico 1, que demonstra como a quantidade de BOs registrados não corresponde nem à metade das medidas protetivas solicitadas perante o juízo da Comarca de Itacoatiara.

 

Gráfico 1. Registro de Ocorrências x Instauração de Medidas Protetivas de Urgência

 

Fonte: elaboração própria.

 

Nessa estatística da Delegacia especializada em crimes cometidos contra as Mulheres de Itacoatiara, tem-se uma noção de que a maioria das denúncias não acaba se concretizando em Medidas Protetivas de Urgência.

4. Conclusão

 

 

Buscou-se, com este artigo, analisar os aspectos socioeconômicos dos casos de violência doméstica contra as mulheres atendidas pelo Serviço de Apoio à Mulher, Idoso e Criança (SAMIC)/Casa de Maria de Itacoatiara (AM), no interior do estado do Amazonas.

Ao se pensar na violência contra as mulheres, faz-se necessário perceber que as variáveis de gênero e classe são fatores que, nas trajetórias das interlocutoras, reforçaram relações conjugais com assimetria de poder. Na relação em que a violência doméstica estava presente, essas variáveis mostraram-se condições de perpetuação da violência e dificuldade de realizar denúncia capaz de romper com o ciclo de violações da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos.

Esse cenário também mostrou os medos relacionados à denúncia da situação de violência, fortemente relacionados à fragilidade da efetivação do sistema de proteção de mulheres no cenário de interior do Amazonas. Por meio das narrativas das interlocutoras foi possível concluir que elas tinham medo das atitudes dos maridos/companheiros pós-denúncia de violência doméstica, pois, na maioria das vezes, as agressões aumentavam e o ciclo de violência não era interrompido, uma vez que retornavam a conviver com seus algozes e, agora, denunciados à polícia. Elas desistiam da queixa ou não retornavam à delegacia, ou, ainda, pensavam que, ao fazerem um boletim de ocorrência já estariam resguardadas.

Entretanto, existe todo um processo para que a denúncia realmente se concretize até que sejam adotadas as medidas protetivas de urgência ou ocorra a prisão do autor da violência. Neste sentido, observou-se que os trâmites jurídico-legais não acompanham, de forma concomitante, as urgências oriundas das situações que ameaçam a vida.

Por fim, ao enfatizar os aspectos socioeconômicos das sobreviventes de violência, compreendeu-se que o trabalho de cuidado familiar, em detrimento do trabalho formal remunerado fora de casa, foi dispositivo perpetuador da dependência financeira. Nas negociações conjugais cotidianas, as Marias, dedicadas exclusivamente ao trabalho doméstico não remunerado, aquelas que realizavam trabalhos informais (sem carteira assinada) e as que possuíam vínculo trabalhista formal, vivenciaram com insegurança suas condições econômicas, mostrando que seus instrumentos de resistência utilizados na luta pelo exercício de poder eram inferiores aos do dominador. Mesmo aquelas que dispunham de renda compreenderam-se em posição de dependência financeira.

Assim, considerando a relação da mulher ribeirinha com o meio ambiente, convém refletir a respeito das possibilidades de trabalho formal destinado a ela, no intuito de fortalecer sua segurança econômica. Além das atividades que viabilizam inserção no mercado informal, tais como cursos de artesanato e outros, vislumbra-se, no horizonte de referências, a oferta de cursos profissionalizantes, por meio de parcerias institucionais.

 

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